Haitianos ocupam a cidade, submetem-se ao trabalho informal
como mão de obra barata e se tornam a cara da nova onda migratória em São Paulo
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Foto: Cido
Marques/FCC (18/05/2014) Fotos Públicas
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A avenida
São João, localizada centro de São Paulo, é um dos cartões postais mais famosos
da cidade. No início do século XX era conhecida por sua constante agitação
cultural e por abrigar, além de cinemas, teatros e lojas especializadas no
comércio de calçados e guarda-chuvas, um grande número de migrantes e de imigrantes. Já foi cantada em verso e prosa por poetas e músicos, como o
cantor Caetano Veloso que a imortalizou em Sampa, considerado por alguns
um hino à cidade.
Nos últimos dois anos,
entretanto, quem passa ao longo da São João percebe que é outro movimento e
outros sons, ou mais precisamente, outros sotaques que têm ocupado a avenida e
ecoado nas lojas, bares, hotéis e ruas ao redor: Os imigrantes haitianos são os
novos habitantes do pedaço.
Segundo dados
oficiais. dos 1,7 milhão de estrangeiros de 85 nacionalidades que vieram para o
Brasil desde 2011, pelos menos 600 mil vivem na capital paulista e os haitianos
são o exemplo mais visível do aumento exponencial do número de estrangeiros que
passaram a viver na terra da garoa, recentemente.
A quantidade de
haitianos que buscam refúgio ou uma nova oportunidade de vida nas regiões
paulistanas passou de 814 em 2011 para 14579 em 2013, população que chega a ser
duas vezes maior do que a de muitas cidades do interior de Minas Gerais.
Vindos de outro sonho
infeliz de cidade, são os eles, e não mais os italianos, portugueses,
espanhóis, libaneses e nordestinos, os novos moradores da avenida São João que
têm aprendido depressa a chamar São Paulo de realidade.
Fugidos ou expulsos
de sua terra natal pelo terremoto que devastou o país em 2010, parece até que
serviram de inspiração para outra música famosa de Caetano, Haiti, cuja letra e
refrão refletem a dor, indignação, desrespeito e sofrimento dos negros
brasileiros e que cai como uma luva em ralação à situação que os nativos de
Porto Príncipe vêm enfrentando na cidade: “O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui”.
Muitos vêm exercendo
atividades técnicas e braçais na construção civil. Outros têm sobrevivido como
camelôs ou se submetendo a trabalhar em média 14 horas por dia em condições
semiescravas e degradantes para ganhar até um salário mínimo, embora possuam um
perfil não muito diferente do perfil do brasileiro médio, segundo pesquisa
realizada pela PUC-MG que apontou que a maioria tem segundo grau incompleto e
faixa etária entre 25 e 34 anos.
Exploração
e preconceito
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Foto: Fernando
Pereira/SECOM (06/05/2014) Fotos Públicas
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Os irmãos Rony, 26
anos, e Roniel, 25 anos, são exemplos de imigrantes que viveram a exploração de
mão de obra na cidade. Expulsos do Haiti pelo terremoto que devastou o país em
2010, onde perderam os pais e dois irmãos que nunca tiveram os corpos
encontrados e identificados, eles estão no Brasil há 18 meses.
Chegaram a trabalhar
16 horas diárias como serventes de pedreiro na construção civil e depois como
ajudantes de cozinha em um restaurante Self service. “Trabalhávamos em troca de
comida e de um rendimento de R$ 540,00. Como tínhamos que pagar, cada um, R$
300,00 de aluguel em um quarto de pensão, não sobrava nada”, afirmam chateados.
Inconformados com o
desrespeito, resolveram dar a volta por cima, decretaram a independência e hoje
chegam a ganhar até R$ 1000,00 vendendo relógios por R$ 30,00 na região da Praça
da República em São Paulo.
Sentem-se
beneficiados porque os “rapas” não caem em cima deles. “Pelo fato de não sermos
brasileiros, eles não tomam nossos produtos. Acho que têm medo de sofrer alguma
punição do governo, da delegacia de imigração”, confessa Jacquet, aliviado, mas
um tanto decepcionado com o Brasil por acreditar que iria encontrar um emprego
decente com possibilidade de estabilidade financeira em um médio prazo.
As funções
subalternas ou de pouca valorização profissional e as péssima condições de
trabalho que são oferecidos aos imigrantes não acontece somente no Brasil. É assim também na Europa.
Segundo o economista e sociólogo José de Almeida Amaral
Júnior, o europeu também não bota a mão no trabalho mais pesado. “As antigas
colônias migram para as metrópoles para buscar emprego e o emprego que vão ter
não é o de professor, mas de lavador de pratos, limpador de banheiro e varredor
de chão”, afirma.
Apesar de existirem
leis brasileiras rígidas que proíbem a contratação ilegal e a exploração da mão
obra imigrante, a fiscalização ainda deixa a desejar e muitos imigrantes acabam
cedendo às exigências desrespeitosas de quem pode contratar.
Vivem o tempo todo
na corda bamba e presos a um dilema: não podem voltar aos seus países de origem
porque não têm mais dinheiro e não conseguem continuar por aqui sem ter onde
morar ou o que comer.
Para Amaral, no
Brasil, os haitianos encontram outro problema: o preconceito. “Algumas pessoas
reclamam porque eles são haitianos. Porque o cara é negro. Se fosse alemão,
italiano francês ou português ou se achassem eles bonitinhos e de olho claro,
não tinha erro. Se o cara é negro, haitiano ou angolano, reclama-se. Não pelo
desequilíbrio do mercado ou pelo medo do desemprego, mas por preconceito mesmo,
porque se o país tem pleno emprego pode absorver todos esses migrantes. ”,
sentencia.
Amaral acredita que,
por enquanto, a onda de imigração não tem solução, afinal o mundo está em crise
e é uma crise séria. Não há perspectivas de uma melhora relativamente rápida.
Um país ou outro ainda consegue se safar, “mas de um modo geral a economia
mundial está devagar no sentido de não poder absorver de uma forma fácil a mão
de obra que vem de outro lugar. “Se a economia vai bem e está funcionando, até
no deserto os Tuaregs vivem”, conclui.
A
exceção e a regra
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Foto: Laura
Daudén/Conectas.org (29/04/2014) Fotos Públicas
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Mas, como toda regra
tem exceção, há também quem tem sorte em meio a esse turbilhão de dúvidas e
incertezas econômicas. É o caso de Jacques Card Renel, 38 anos. No Brasil há
apenas seis meses e Adventista do Sétimo Dia, Renel conseguiu um emprego
registrado na Igreja Batista da Liberdade.
Professor de costura
e costureiro no Haiti, pai de um casal de filhos que deixou por lá e dos quais
morre de saudade, mãos calejadas e olhos marejados de lágrimas, Edi, como é
conhecido na igreja, sente-se abençoado e feliz, mesmo trabalhando como
auxiliar de serviços gerais.
“No Brasil está difícil até para os brasileiros
encontrarem emprego, mas graças a Deus e aos irmãos da igreja consegui um
trabalho que me dá um salário bom e que me permite ajudar meus filhos e minha
família que ficou em Porto Príncipe, confessa aliviado.
Renel, que fala
fluentemente francês, inglês, espanhol, criolo, já “arranha” bem português. Diz
estar satisfeito e feliz e confessa que dificilmente volta a morar no Haiti,
que o seu maior sonho é conseguir uma residência e trazer a família para o
Brasil.
Jacques Renel não tem
sido o único abençoado. As igrejas vêm se notabilizando como o lugar onde
outros muitos imigrantes têm encontrado conforto espiritual e abrigo.
Católicos e evangélicos dividem a atenção e a preferência dos povos africanos que
chegam ao Brasil. É o caso Igreja Adventista do Sétimo Dia Central Paulistana e
da Paróquia Nossa Senhora da Paz.
Elas já receberam
mais de 10 mil imigrantes de várias nacionalidades, inclusive exilados e
refugiados. Oferecem aulas de português, acompanhamento jurídico, social,
psicológico, orientação profissional, acompanhamento médico e encaminhamento ao
emprego. “A missão principal é o amor ao próximo e o cumprimento do “ide” de
Jesus”, afirma o administrador da Liber – Igreja Batista da Liberdade – Francisco
Rissato.
Habitantes do novo
quilombo de Zumbi que São Paulo se tornou nos últimos anos, os imigrantes só
querem é ser feliz. Suas histórias parecidas e realidades semelhantes têm
marcado a vida e o dia a dia da não mais túmulo do samba e da não tanto terra
da garoa.
São homens e mulheres
que, apesar da dor, do banzo e da distância, têm resistido, para mostrar “aos
outros quase pretos (e são todos quase pretos) a grandeza épica de um povo em
formação”, que há lugar para todos na terra dos mil povos e que dá para viver
um sonho feliz de cidade na Pan-America de Áfricas utópicas.
Que o sonho deles
seja possível, que todos sejam bem-vindos e que a exceção - aqueles que têm se
dado bem - se torne a regra.
O
ABC DA IMIGRAÇÃO
IMIGRANTE:
Pessoa que imigra ou imigrou, que entra em um país estrangeiro com o objetivo
de residir ou trabalhar.
EMIGRANTE:
Êxodo de indivíduos ou grupos, considerado do ponto de vista do país de origem.
No âmbito sociológico, a emigração consiste no abandono voluntário do seu país
de origem, por motivos políticos, econômicos, religiosos etc.
ASILADO:
Que recebeu asilo, refúgio.
ASILADO
POLÍTICO: Sob proteção ou, em determinadas circunstâncias
e sob determinadas condições. É dada no território de um Estado ou de suas
missões diplomáticas creditadas no exterior para pessoas perseguidas por suas
opiniões políticas, crenças religiosas ou as suas condições étnicas.
EXILADO:
Que foi exilado ou se exilou, banido, degredado, deportado, desterrado,
expatriado, proscrito, despatriado.
REFUGIADO:
Indivíduo que se mudou para um lugar seguro, buscando proteção. Aquele
que foi obrigado a sair de sua terra natal por qualquer tipo de perseguição;
quem se refugiou; pessoa que busca escapar de um perigo. Refugiado
político. Quem foi obrigado a deixar sua pátria por sofrer perseguição
política.
TEMPORÁRIO:
É quando uma pessoa vai para um lugar e depois de um tempo volta ou vai e volta
depois de um longo tempo.
PERMANENTE:
Quem foi autorizado a estabelecer residência fixa em outro país por trabalho
permanente ou por ter estabelecido vínculos familiares com pessoas do país em
que passou a viver.
COIOTE:
Traficante de seres humanos ou que, mediante extorsão e pagamento de dinheiro,
abusos físicos, estupro, submetem pessoas às suas vontades em troca de
liberdade ou permissão para entrar ou sair de uma região.
Clique aqui e confira também a entrevista com o economista e professor José Amaral.