Dando
prosseguimento à série de entrevistas sobre a Reforma da Previdência, a
convidada de hoje é Marta Gueller,
advogada especialista em Direito Previdenciário e contrária à maioria das propostas
feitas pelo governo Michel Temer.
Para ela, a forma de
tratamento desigual e excludente que a maioria das propostas sugerem vão fazer com que o trabalhador, a população de baixa renda e os aposentados paguem a conta e arquem com o ônus pela reestruturação da Previdência Social brasileira.
Marta Gueller, Advogada especialista em Direito Previdenciário Foto: Reprodução |
BLOG DO JOAQUIM: A reforma
da Previdência é uma discussão antiga e o calcanhar de Aquiles de todos os
governos depois da redemocratização, ocorrida em 1985. Até que ponto a senhora
acredita que ela é realmente inevitável e até que ponto podemos viver sem ela?
MARTA GUELLER: No meu ponto de vista nós não fomos tão
irresponsáveis assim. Desde a Constituição de 1988 já fizemos nove reformas nos
artigos que cuidam dessa matéria. Emendas constitucionais já fizemos nove. Não
é que nada foi feito, que a população está envelhecendo e a chave da abóboda
para os problemas financeiros seria a reforma da Previdência. Mesmo porque a
grande reforma previdenciária teria que incluir todos os segurados.
BJ: O que seria todos os segurados?
MARTA GUELLER: Nós temos os segurados do Regime Geral, que é o
peão, o trabalhador que paga o INSS, os servidores públicos, que também são
muito importantes para fazer funcionar toda a máquina nos âmbitos municipal,
estadual e federal e que pagam suas contribuições para os regimes próprios de
previdência, que difere do regime do INSS, e temos ainda os militares. O que
acontece no pais é que a Seguridade Social é muito diferente. Do Oiapoque ao
Chuí as pessoas não são tratadas da mesma forma. Não há igualdade.
BJ: Se a reforma da Previdência é
realmente necessária como o governo afirma e outros segmentos da economia e da
política também defendem, porque é que ela ainda não foi feita para valer no Brasil?
MARTA GUELLER: Porque quem faz as leis é quem ganha mais. Hoje o teto do INSS é pouco mais de R$ 5.180,00,
entretanto o STF – Supremo Tribunal Federal – remunera seus ministros na base
de R$ 34.000,00. Há um abismo entre o regime geral e os regimes próprios. Hoje
não dá para você comparar os tetos salariais. Uma das previsões que eles querem
fazer é tributar ou aumentar a contribuição dos servidores, que hoje é de 11%, para
14% e no regime do INSS fazer com que o aposentado contribua também para a
Previdência Social depois de aposentado. 2/3 dos benefícios que são pagos pelo
INSS são pagos no valor de R$ 880,00. Quem é que vai pagar essa conta? Quem vai
ser mais atingido pela reforma do modo que ela está sendo escrita são as
pessoas mais pobres.
BJ: Esse realmente é o caminho?
MARTA GUELLER: Eu acho que não é por aí porque nós temos, desde
a década de 80, a DRU – Desvinculação da Receita da União. O formato que querem
adotar para a reforma da Previdência é torna-la na forma de capitalização, como
a chilena, que não deu certo lá no Chile. Estamos querendo fazer a mesma coisa
aqui.
BJ: Como funciona o sistema de
seguridade social hoje no Brasil?
MARTA GUELLER: O empregado paga o INSS do seu salário. O
empregador já desconta a contribuição do empregado e paga a dele. Os estados,
municípios, a União, toda a sociedade paga INSS. Quando o cidadão de aposenta,
e no Brasil o trabalhador começa a trabalhar com 12 para ajudar a família,
embora registrado seja só aos 16, e partir daí ele vai contribuir a vida toda.
Aos 35 anos de contribuição ele já tem direito a se aposentar. Por isso 51 anos
e considerado cedo para se aposentar, mas é justo já que se começou a trabalhar
cedo. A mulher com 30 anos de contribuição já se aposenta.
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Aposentados e a dúvida sobre dias melhores Foto: ANPR (14/06/2016) Site Fotos Públicas |
BJ: Em 1988 foi realizada uma reforma na Previdência.
Quais as mudanças que ocorreram?
MARTA GUELLER: Sim, em 1998 foi feita uma reforma
previdenciária. Nessa reforma, introduziu-se uma idade mínima para os
servidores que, desde então, já têm uma idade mínima para se aposentar, embora
no regime geral não há. Eu vejo com bons olhos você fixar uma idade mínima para
a aposentadoria, mas tem-se que se considerar que não dá para comparar o Brasil
com os países superdesenvolvidos. Não temos o mesmo grau de saneamento básico,
de renda mínima, etc.
BJ: Quanto a desvinculação do piso
do salário mínimo, o que há de positivo e negativo nessa proposta?
MARTA GUELLER: Acho também uma irresponsabilidade desvincular o piso
do salário mínimo porque o salário mínimo tem que dá para todos aqueles itens
que estão previstos no artigo sexto da Constituição: moradia, saúde, habitação,
vestimenta, educação. O valor de R$ 880,00 tem que dar para tudo isso. Acho uma
loucura a desindexação do mínimo.
BJ: O que de pior já foi feito em
relação à Previdência Social Brasileira?
MARTA GUELLER: O pior é não mexerem com os militares. Eles não
pagam contribuições para receberem seus soldos. Isso é errado, é desigual. Não
temos um número muito grande de militares em comparação aos outros segurados da
Previdência. Se há uma geração que tem que pagar a conta tem que ser toda ela e
de forma igual e não só os segurados do Regime Geral que são os mais pobres,
aqueles que contribuem desde os 16 anos de idade.
BJ: E o que de melhor já se fez?
MARTA GUELLER: Uma coisa boa, e que já foi feita, foi ter-se
criado uma idade mínima para os servidores. A criação da contribuição que
servidores pagam sobre suas aposentadorias e pensões. Acho que importante que
se contribua, já que a contribuição para as aposentadorias dos servidores só
foi criada na década de 90, portanto o que existe de rombo no sistema, e que
eles acusam como déficit, ocorre porque só computam a forma de capitalização.
BJ: Quais são as outras formas de
contribuição ou arrecadação?
MARTA GUELLER: Quando a pessoa se aposenta ela continua
obrigatoriamente pagado Previdência Social. Nesse caso ela também está
financiando os benefícios das pessoas que já estão aposentadas e o dela mesma,
ela está de autofinanciando. Quando se aposta na loteria, por exemplo, sobre o
prêmio da loteria também incide a Previdência, os impostos são abatidos do
valor premiado e entres eles uma parte do dinheiro vai para a Seguridade Social
para financiar os benefícios. Quando se importa e se exporta um produto uma
parte dos recursos também vai para os cofres da Previdência. Todo esse dinheiro
é “carimbado”, ou seja, ele está vinculado, não pode ser usado para outro tipo
de destino, que é o que está acontecendo com DRU, da qual eles desvinculam a
receita para poder financiar educação e saúde, porque o dinheiro arrecado para
essas áreas não está sendo suficiente.
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Aposentados X Reforma: Equilíbrio delicado Foto ANPR (14/06/2016) Site Fotos Públicas |
BJ: Até que ponto é injusto a
reforma da Previdência tratar da mesma forma categorias diferentes e com realidades
diferentes?
MARTA GUELLER: Isso fere a isonomia, princípio do direito
segundo o qual todos são iguais perante a lei. Os desiguais têm que ser
tratados desigualmente, ou seja, tem-se que se fazer uma reforma de maneira que
as pessoas que ganham acima do salário mínimo possam contribuir de uma forma
maior. Os brasileiros foram às ruas para exigir que os benefícios concedidos
até a promulgação da Constituição de 1988 fossem garantidos, até que fosse
criada uma lei regulamentando a Previdência e que permitisse a essas pessoas a
equiparação em números de salários mínimos.
BJ: Como era antes da Constituição
de 1988?
MARTA GUELLER: Antigamente pagavam sob 20 salários mínimos.
Hoje, paga-se sobre R$ 5.180,00, quanto é isso em número de salários mínimos?
Dá para perceber a disparidade social e o quanto já se perdeu depois de tantas
conquistas que já ocorreram. A Constituição Cidadã criou um cobertor muito
grande. O manto é muito grande, mas não consegue abrigar toda a população. Não
se pode abrir mão dos direitos conquistados sem tratar as pessoas de forma
desigual. Isonomia é isso. É você tratar as pessoas de forma desigual porque
elas são desiguais. Você não pode beneficiar uns, ou continuar beneficiando uns em detrimento dos mais pobres.
BJ: No Brasil, todas as vezes que se
tenta fazer uma reforma na dimensão e na profundidade da reforma da Previdência
Social algumas pessoas e alguns segmentos específicos insistem em fazer
comparações com outros países. Qual o risco dessas comparações em relação à
reforma previdenciária?
MARTA GUELLER: É o risco do retrocesso social. Basta ver por
quem a previdência privada é feita. É você abrir mão das conquistas todas que
foram alcançadas pelos trabalhadores e dar aos bancos a possibilidade de
venderem planos de previdência privada para pessoas que ganham salário mínimo.
A previdência privada foi introduzida na Constituição depois de 2000. Ela vem
como um quarto pilar da Seguridade Social, para ser um complemento de renda. Se
alguém pega um parente aposentado e pergunta para ele se a cesta básica que ele
compra hoje igual que ele comprava quanto se aposentou vai ver que houve um
achatamento, que ele ficou mais pobre desde que ele se aposentou lá atrás. O
que acontece agora é que a desvinculação do salário mínimo vai deixar todo
mundo mais pobre, inclusive quem ganha o piso.
BJ: Para quem serve a previdência
privada?
MARTA GULLER: Para quem ganha acima de R$ 5.180,00. Quem ganha
acima desse valor hoje, aí sim é quem vai fazer uma previdência privada e vai
fazer a poupança dela no banco. Quem não pode fazer previdência privada tem que
estar protegido pelo sistema atual. Mas eles querem mudar isso. Querem fazer
com que teto seja menor, pagar o mínimo para todo mundo. Aí as pessoas vão
recorrer aos bancos, se eles quebrarem ou não pagarem fica por isso mesmo.
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A próxima geração é um dos segmentos vai pagar o pato pela reforma da Previdência Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil (07/07/2015) |
BJ: Alguém tem que arcar com o ônus
da reforma da Previdência. Quem vai arcar com o ônus se a reforma for aprovada?
MARTA GUELLER: Eu ainda acho que a população vai às ruas para
pleitear que a reforma não atinja os mais pobres. Embora todos vão às ruas,
desde o servidor que ganha mais ao militar que acredita que ele não tem de
contribuir porque ele serve à Nação com a previdência dele. Portanto, a corda
vai arrebentar, como sempre, do lado mais fraco, do trabalhador que contribui
com o regime geral para que possa continuar colocando o pão na mesa da família.