14 de dez. de 2016

TRATAMENTO DESIGUAL

Dando prosseguimento à série de entrevistas sobre a Reforma da Previdência, a convidada de hoje é Marta Gueller, advogada especialista em Direito Previdenciário e contrária à maioria das propostas feitas pelo governo Michel Temer.

Para ela, a forma de tratamento desigual e excludente que a maioria das propostas sugerem vão fazer com que o trabalhador, a população de baixa renda e os aposentados paguem a conta e arquem com o ônus pela reestruturação da Previdência Social brasileira.

Reforma da Previdência, Aposentados, Pensionistas, INSS
Marta Gueller, Advogada especialista em Direito Previdenciário
Foto: Reprodução


BLOG DO JOAQUIM: A reforma da Previdência é uma discussão antiga e o calcanhar de Aquiles de todos os governos depois da redemocratização, ocorrida em 1985. Até que ponto a senhora acredita que ela é realmente inevitável e até que ponto podemos viver sem ela?

MARTA GUELLER: No meu ponto de vista nós não fomos tão irresponsáveis assim. Desde a Constituição de 1988 já fizemos nove reformas nos artigos que cuidam dessa matéria. Emendas constitucionais já fizemos nove. Não é que nada foi feito, que a população está envelhecendo e a chave da abóboda para os problemas financeiros seria a reforma da Previdência. Mesmo porque a grande reforma previdenciária teria que incluir todos os segurados.

BJ: O que seria todos os segurados?

MARTA GUELLER: Nós temos os segurados do Regime Geral, que é o peão, o trabalhador que paga o INSS, os servidores públicos, que também são muito importantes para fazer funcionar toda a máquina nos âmbitos municipal, estadual e federal e que pagam suas contribuições para os regimes próprios de previdência, que difere do regime do INSS, e temos ainda os militares. O que acontece no pais é que a Seguridade Social é muito diferente. Do Oiapoque ao Chuí as pessoas não são tratadas da mesma forma. Não há igualdade.

BJ: Se a reforma da Previdência é realmente necessária como o governo afirma e outros segmentos da economia e da política também defendem, porque é que ela ainda não foi feita para valer no Brasil?

MARTA GUELLER: Porque quem faz as leis é quem ganha mais.  Hoje o teto do INSS é pouco mais de R$ 5.180,00, entretanto o STF – Supremo Tribunal Federal – remunera seus ministros na base de R$ 34.000,00. Há um abismo entre o regime geral e os regimes próprios. Hoje não dá para você comparar os tetos salariais. Uma das previsões que eles querem fazer é tributar ou aumentar a contribuição dos servidores, que hoje é de 11%, para 14% e no regime do INSS fazer com que o aposentado contribua também para a Previdência Social depois de aposentado. 2/3 dos benefícios que são pagos pelo INSS são pagos no valor de R$ 880,00. Quem é que vai pagar essa conta? Quem vai ser mais atingido pela reforma do modo que ela está sendo escrita são as pessoas mais pobres.

BJ: Esse realmente é o caminho?

MARTA GUELLER: Eu acho que não é por aí porque nós temos, desde a década de 80, a DRU – Desvinculação da Receita da União. O formato que querem adotar para a reforma da Previdência é torna-la na forma de capitalização, como a chilena, que não deu certo lá no Chile. Estamos querendo fazer a mesma coisa aqui.

BJ: Como funciona o sistema de seguridade social hoje no Brasil?

MARTA GUELLER: O empregado paga o INSS do seu salário. O empregador já desconta a contribuição do empregado e paga a dele. Os estados, municípios, a União, toda a sociedade paga INSS. Quando o cidadão de aposenta, e no Brasil o trabalhador começa a trabalhar com 12 para ajudar a família, embora registrado seja só aos 16, e partir daí ele vai contribuir a vida toda. Aos 35 anos de contribuição ele já tem direito a se aposentar. Por isso 51 anos e considerado cedo para se aposentar, mas é justo já que se começou a trabalhar cedo. A mulher com 30 anos de contribuição já se aposenta.

Reforma da Previdência, Aposentados, Pensionistas, INSS
Aposentados e a dúvida sobre dias melhores
Foto: ANPR (14/06/2016) Site Fotos Públicas


BJ: Em 1988 foi realizada uma reforma na Previdência. Quais as mudanças que ocorreram?

MARTA GUELLER: Sim, em 1998 foi feita uma reforma previdenciária. Nessa reforma, introduziu-se uma idade mínima para os servidores que, desde então, já têm uma idade mínima para se aposentar, embora no regime geral não há. Eu vejo com bons olhos você fixar uma idade mínima para a aposentadoria, mas tem-se que se considerar que não dá para comparar o Brasil com os países superdesenvolvidos. Não temos o mesmo grau de saneamento básico, de renda mínima, etc.

BJ: Quanto a desvinculação do piso do salário mínimo, o que há de positivo e negativo nessa proposta?

MARTA GUELLER: Acho também uma irresponsabilidade desvincular o piso do salário mínimo porque o salário mínimo tem que dá para todos aqueles itens que estão previstos no artigo sexto da Constituição: moradia, saúde, habitação, vestimenta, educação. O valor de R$ 880,00 tem que dar para tudo isso. Acho uma loucura a desindexação do mínimo.

BJ: O que de pior já foi feito em relação à Previdência Social Brasileira?

MARTA GUELLER: O pior é não mexerem com os militares. Eles não pagam contribuições para receberem seus soldos. Isso é errado, é desigual. Não temos um número muito grande de militares em comparação aos outros segurados da Previdência. Se há uma geração que tem que pagar a conta tem que ser toda ela e de forma igual e não só os segurados do Regime Geral que são os mais pobres, aqueles que contribuem desde os 16 anos de idade.

BJ: E o que de melhor já se fez?

MARTA GUELLER: Uma coisa boa, e que já foi feita, foi ter-se criado uma idade mínima para os servidores. A criação da contribuição que servidores pagam sobre suas aposentadorias e pensões. Acho que importante que se contribua, já que a contribuição para as aposentadorias dos servidores só foi criada na década de 90, portanto o que existe de rombo no sistema, e que eles acusam como déficit, ocorre porque só computam a forma de capitalização.

BJ: Quais são as outras formas de contribuição ou arrecadação?

MARTA GUELLER: Quando a pessoa se aposenta ela continua obrigatoriamente pagado Previdência Social. Nesse caso ela também está financiando os benefícios das pessoas que já estão aposentadas e o dela mesma, ela está de autofinanciando. Quando se aposta na loteria, por exemplo, sobre o prêmio da loteria também incide a Previdência, os impostos são abatidos do valor premiado e entres eles uma parte do dinheiro vai para a Seguridade Social para financiar os benefícios. Quando se importa e se exporta um produto uma parte dos recursos também vai para os cofres da Previdência. Todo esse dinheiro é “carimbado”, ou seja, ele está vinculado, não pode ser usado para outro tipo de destino, que é o que está acontecendo com DRU, da qual eles desvinculam a receita para poder financiar educação e saúde, porque o dinheiro arrecado para essas áreas não está sendo suficiente.

Reforma da Previdência, Aposentados, Pensionistas, INSS
Aposentados X Reforma: Equilíbrio delicado
Foto ANPR (14/06/2016) Site Fotos Públicas


BJ: Até que ponto é injusto a reforma da Previdência tratar da mesma forma categorias diferentes e com realidades diferentes?

MARTA GUELLER: Isso fere a isonomia, princípio do direito segundo o qual todos são iguais perante a lei. Os desiguais têm que ser tratados desigualmente, ou seja, tem-se que se fazer uma reforma de maneira que as pessoas que ganham acima do salário mínimo possam contribuir de uma forma maior. Os brasileiros foram às ruas para exigir que os benefícios concedidos até a promulgação da Constituição de 1988 fossem garantidos, até que fosse criada uma lei regulamentando a Previdência e que permitisse a essas pessoas a equiparação em números de salários mínimos.

BJ: Como era antes da Constituição de 1988?

MARTA GUELLER: Antigamente pagavam sob 20 salários mínimos. Hoje, paga-se sobre R$ 5.180,00, quanto é isso em número de salários mínimos? Dá para perceber a disparidade social e o quanto já se perdeu depois de tantas conquistas que já ocorreram. A Constituição Cidadã criou um cobertor muito grande. O manto é muito grande, mas não consegue abrigar toda a população. Não se pode abrir mão dos direitos conquistados sem tratar as pessoas de forma desigual. Isonomia é isso. É você tratar as pessoas de forma desigual porque elas são desiguais. Você não pode beneficiar uns, ou continuar beneficiando uns em detrimento dos mais pobres.

BJ: No Brasil, todas as vezes que se tenta fazer uma reforma na dimensão e na profundidade da reforma da Previdência Social algumas pessoas e alguns segmentos específicos insistem em fazer comparações com outros países. Qual o risco dessas comparações em relação à reforma previdenciária?

MARTA GUELLER: É o risco do retrocesso social. Basta ver por quem a previdência privada é feita. É você abrir mão das conquistas todas que foram alcançadas pelos trabalhadores e dar aos bancos a possibilidade de venderem planos de previdência privada para pessoas que ganham salário mínimo. A previdência privada foi introduzida na Constituição depois de 2000. Ela vem como um quarto pilar da Seguridade Social, para ser um complemento de renda. Se alguém pega um parente aposentado e pergunta para ele se a cesta básica que ele compra hoje igual que ele comprava quanto se aposentou vai ver que houve um achatamento, que ele ficou mais pobre desde que ele se aposentou lá atrás. O que acontece agora é que a desvinculação do salário mínimo vai deixar todo mundo mais pobre, inclusive quem ganha o piso.

BJ: Para quem serve a previdência privada?

MARTA GULLER: Para quem ganha acima de R$ 5.180,00. Quem ganha acima desse valor hoje, aí sim é quem vai fazer uma previdência privada e vai fazer a poupança dela no banco. Quem não pode fazer previdência privada tem que estar protegido pelo sistema atual. Mas eles querem mudar isso. Querem fazer com que teto seja menor, pagar o mínimo para todo mundo. Aí as pessoas vão recorrer aos bancos, se eles quebrarem ou não pagarem fica por isso mesmo.  


Reforma da Previdência, Aposentados, Pensionistas, INSS
A próxima geração é um dos segmentos vai pagar o pato pela reforma da Previdência
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil (07/07/2015)


BJ: Alguém tem que arcar com o ônus da reforma da Previdência. Quem vai arcar com o ônus se a reforma for aprovada?

MARTA GUELLER: Eu ainda acho que a população vai às ruas para pleitear que a reforma não atinja os mais pobres. Embora todos vão às ruas, desde o servidor que ganha mais ao militar que acredita que ele não tem de contribuir porque ele serve à Nação com a previdência dele. Portanto, a corda vai arrebentar, como sempre, do lado mais fraco, do trabalhador que contribui com o regime geral para que possa continuar colocando o pão na mesa da família. 
Local: SÃO PAULO São Paulo, SP, Brasil

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