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Artista de criatividade intensa, Belchior morreu aos 70 anos Foto: Divulgação |
De nome comprido e talento de primeira grandeza, o cantor
e compositor Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o Belchior, morreu hoje
(30), aos 70 anos, aparentemente de
causas naturais, em Santa Cruz do Sul (RS).
Belchior era o décimo terceiro filho de uma família de 23 irmãos (13 mulheres e 10 homens). A paixão espontânea
pela música desabrochou cedo no
garoto de Sobral, cidade do interior
do Ceará.
O dom, que mais
tarde seria reconhecido como criatividade
à flor da pele, foi influenciado e amparado pelo talento amador do avô que tocava instrumentos musicais, da mãe que era corista de igreja e de alguns tios, seresteiros e tocadores de violão.
Em 1971, depois de quatro anos cursando medicina, Belchior decidiu transformar
todo seu talento artístico e seu conhecimento sobre filosofia, política, religião, ciência, em música de alta qualidade.
Com “A hora do almoço” venceu o Festival Universitário da Canção, em
1971. Em 1972, abandou o curso de medicina
da Universidade Federal do Ceará para
definitivamente trilhar os caminhos
sem volta da música.
Belchior considerava sua música contemporânea, nordestina e autobiografica, em determinado nível. Costumava afirmar que procurava com suas letras e canções apresentar uma vertente verbal e visual nova.
Belchior considerava sua música contemporânea, nordestina e autobiografica, em determinado nível. Costumava afirmar que procurava com suas letras e canções apresentar uma vertente verbal e visual nova.
O aspecto visual do concretismo em suas composições iniciais logo foi adotado,
assumido, apoiado, vinculado e misturado à tradição
da música nordestina e cearense, em particular.
Artista de grande talento e reconhecimento nacional, Belchior
sempre buscou em seu trabalho misturar
a novidade com a tradição. Conseguiu, como poucos,
fazê-lo com sucesso e propriedade.
Cantor e
compositor que quase se tornou padre,
Belchior, quando criança, tinha o hábito de fugir de casa. A partir de 2007, começou a sair de cena.
Em 2008, Belchior resolveu se auto-exilar
e fugir definitivamente do campo de visão do cotidiano, do alcance da fama e do
sucesso, ao ponto de não comparecer
ao sepultamento da mãe.
De comportamento intenso e ao mesmo tempo enigmático, Belchior transformou-se em uma esfinge:
todos queriam decifrá-lo, mas ao
mesmo tempo tinham respeito por sua
decisão e pessoa, talvez por medo de
serem devorados por ele.
Autocrítico bem-sucedido de sua geração, Belchior buscou
insistentemente o novo, o momento presente da música
popular brasileira.
Mesmo ausente do show business por uma decisão consciente, ele sempre foi uma presença marcante na MPB através da suas letras, canções e da história
que construiu.
Apesar de sua reclusão determinada e de seu silêncio decidido, Belchior, o rebelde cearense e enigmático rapaz latino-americano, continuará presente no mundo através da intensidade de suas letras,
da sonoridade marcante de suas músicas e da força perene e atemporal de suas canções.
RIP, Belchior!
BELCHIOR POR BELCHIOR
“O meu trabalho
pretende, gostaria de ser, um objeto poético transformador. Que tende para os
interesses da história do homem. Um objeto útil, enfim. Uma arte que sirva, que
não seja ornamental. Uma arma na mão do homem para a conquista de si mesmo,
do universo e dos espaços esquecidos. Tudo isso, claro, aparece como um
universo, novo, jovem e cujo conhecimento só pode ser expresso em palavras
novas. É uma utopia paradisíaca, de transformação pelo que é primitivo no homem”
(Sobre si mesmo e seu trabalho. Em entrevista à Rádio Universitária FM)
“Essa música fala
de uma pessoa do terceiro mundo na esquina do mundo. Na expectativa, dependente
do resto do mundo, mas com uma capacidade tremenda de desdobramento, de
resistência, de rebeldia de espírito, de novidade, de transformação, de poder
novo, enfim. Assume de fato sermos latino-americanos sendo brasileiros, cearenses,
e justamente participantes da fraternidade latino-americana. Fala de “desinsular”
a cultura, de fazer com que a cultura seja penetrante, troque energias com
todos os espaços. Mas, também é uma música irônica, satírica, de humor branco,
negro, amarelo e vermelho sobre a situação das pessoas da Latina América”.
(Sobre a canção Apenas um rapaz latino-americano. Em entrevista à Rádio
Universitária FM)
“O humor cearense
está sempre presente na minha música. É uma ironia característica da nossa
cultura, mas que também contém uma certa graça. Não quero dizer que minha
música contenha naturalmente um humor explícito ou que eu faça uma música
satírica do ponto de vista convencional. Todos esses dados aparecem diluídos no
meu trabalho de um modo muito fino e sutil, o que aumenta cada vez mais o teor
e a carga de ironia. (Sobre o tom humorado de suas letras e canções. Em entrevista à Rádio
Universitária FM).
“Foi uma música
que estava pronta há mais de um ano esperando a gravação de um artista
competente. Foi a que mais marcou a minha vida de artista e cidadão naquele momento.
Foi a música que mais simbolizou o movimento espiritual, todo o momento da juventude
brasileira naquela circunstância e que também teve a sorte e a felicidade de
ser interpretada por Elis, acrescentando ao material por si mesmo rico e
complexo, o poder de sugestão da voz de Elis, o poder de invenção da voz de
Elis. (Sobre
“Como os nossos pais”. Em entrevista à Rádio Universitária FM).
“O meu trabalho
tem uma continuidade, no sentido de que a cada disco eu vou tentando completar
aquilo que está cantado anteriormente. Naturalmente que tudo isso está
acrescido de comportamentos criativos novos, da tentativa de descobrir novas
formas de cantar, de dizer,de pensar o ato de fazer música e de apresentar essa
nordestinidade nova, de uma “cearensidade” aberta para o mundo. O meu trabalho
vem tentado tudo isso de um modo muito amplo, no sentido de abrir uma perspectiva
para o mundo todo mesmo, de tal forma que meu trabalho possa ser ouvido e
interpretado como um trabalho de plena contemporaneidade”. (Sobre o significado
de seu trabalho. Em entrevista à Rádio Universitária FM.).
“O tema básico de
minha música é o espírito de minha geração, a vida cotidiana do cidadão comum.
É uma tentativa de retratar de um modo bastante característico, individual,
pessoal, a vida do homem brasileiro do meu tempo, de tal forma que a fonte de
expressão continua sendo a observação direta e imediata da vida mesmo”. (Sobre
sua fonte de inspiração. Em entrevista a Josué Mariano.).
“É mais o
critério da criatividade, do meu esforço criativo, o momento de liberdade de
criação e de expressão. Como não faço um trabalho voltado imediatamente para o
sucesso, ou o sucesso imediatista, eu uso como critério para escolha das
canções ou para a própria feitura delas, o critério mais artístico, mais
expressional e mais poético, desligado do rádio, da televisão e de se a música
vai fazer sucesso ou não. Me preocupo realmente com o exercício do meu ofício
de artista e de cantor. Se a música fizer sucesso, vem por acréscimo”. (Sobre o critério que usa para compor suas
canções. Em entrevista a Josué Mariano).
“Sou um operário
da minha música e estou ligado ao meu trabalho diariamente. (...) Gosto muito
do exercício do meu ofício porque ele combina o prazer com o fazer e a criação
com o exercício contínuo da vida comum. Tenho uma visão artística ligada mais
com o fazer, com o trabalho, do que com uma visão mais brilhante, que me parece
mais tola”. (Sobre o seu ofício. Em entrevista a Josué Mariano).
“Eu gostaria de
ter uma mensagem muito concreta, muito direta, que pudesse salvar as pessoas,
encaminhá-las, mas eu não tenho essa mensagem sequer para mim, de tal forma que
eu acho que não devem me seguir porque eu também estou perdido. Cada um deve fazer
ou encontrar seu caminho. Sobretudo, não façam como meu, inventem. Ou melhor,
façam como eu: inventem!”. (Sobre qual mensagem deixaria para os fãs. Em
entrevista a Josué Mariano).